O Senado aprovou nessa quarta-feira o novo marco legal do saneamento básico no país. A medida, aprovada pela Câmara no fim do ano passado, pode abrir mais espaço à atuação de agentes privados e atrair investimenos no setor. O projeto foi aprovado por 65 votos a favor e 13 contrários.
Para o relator do projeto, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), o projeto deve mudar um quadro dramático: mais da metade da população brasileira não tem esgoto tratado e cerca 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável.
A estimativa do governo e de especialistas do setor privado é que serão necessários cerca de R$ 700 bilhões para que essa situação seja corrigida até 2033, reduzindo as deficiências de infraestrutura que deixa 104 milhões de brasileiros sem serviço de esgoto.
O novo marco regulatório de saneamento no país é visto também como importante para atração de investimentos no pós-pandemia. O saneamento básico é o último setor de infraestrutura que não foi liberalizado, diferente de segmentos como telefonia e energia. O texto aprovado no Congresso segue agora para sanção do presidente Jair Bolsonaro.
Abertura para o setor privado
O texto prevê a realização de licitações para a contratação de companhias de água e esgoto, o que abre caminho para a entrada da iniciativa privada no setor, que passará a competir em igualdade de condições com as estatais.
Hoje, os contratos são estabelecidos diretamente, sem concorrência. Por isso, apenas 3% das cidades brasileiras são atendidas por empresas privadas.
Tanto as empresas públicas, como as privadas, terão de cumprir metas de universalização, a serem atingidas até o fim de 2033. Até lá, espera-se cobertura de 99% para o fornecimento de água e 90% para coleta e tratamento de esgoto.
Jereissati afirmou que a modernização do setor de saneamento é “necessária e urgente”, pois a precariedade dos serviços prejudica os índices de desenvolvimento humano (IDH) e resulta em imensos prejuízos sociais e econômicos.
— Aprovando neste momento o projeto, o Senado estará não somente evitando, nos próximos anos, a morte de milhares de brasileiros, muitas deles ainda crianças, mas também reduzindo a pressão sobre o SUS, ao diminuir o número de internações provocadas pelo simples fato de que quase metade da população desse país, ainda que tenha acesso à cobertura de rede de telefonia celular, tem permanecido com os pés no esgoto — disse.
O projeto define municípios como responsáveis pelo serviço de saneamento básico e permite a criação de consórcios públicos e convênios de cooperação entre cidades vizinhas para a prestação do serviço.
Regulação da Agência de Águas
Os contratos deverão conter cláusulas essenciais, como metas de expansão dos serviços e de redução de perdas na distribuição de água. O novo marco proíbe a celebração de contratos de programa, isto é, sem concorrência e fechados diretamente entre os titulares dos serviços e as concessionárias.
— Desde o fim da década de 1990 não se via um movimento de liberação de mercado e estímulo ao desenvolvimento privado como este. Todos os investimentos relevantes eram viabilizados ou por estatais ou por fundos de pensão — disse o secretário de desenvolvimento da infraestrutura do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord.
— O município que não aderir terá a população nadando no esgoto, sem empregos e com o sistema de saúde em crise — completou o secretário.
Christiane Dias, presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), avalia que, como titulares dos serviços, os municípios acabarão aderindo ao novo marco regulatório por pelo menos duas razões. Uma delas é que a ANA conhece bem a realidade de cada estado.
— Além do mais, aqueles que observarem essas normas de referência terão prioridade em pegar recursos públicos. A equação se fecha justamente nessa priorização de liberação de recursos para aqueles que aderirem às normas — afirmou.
Caberá à ANA estabelecer normas de referência sobre padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico, regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento, padronização dos contratos de prestação de serviços e redução progressiva e controle da perda de água.
A deficiência no saneamento no país prejudicou inclusive o combate à pandemia. A principal recomendação dos especialistas sempre foi lavar as mãos com frequência. Mais de 30 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada.
Para acelerar a votação, o líder do MDB, Eduardo Braga (AM), anunciou que seu partido iria retirar as emendas que havia apresentado. Uma delas, do próprio Braga, proibia a privatização de concessionárias enquanto durasse a calamidade pública. Ele foi companhado por Cidadania, Rede, PDT, Pros e PT.
Oposição
A oposição tentou evitar a votação. Um dos argumentos é que não seria correto aprovar um texto dessa importância em sessão remota do Senado. As comissões temáticas não estão funcionando e, por isso, o texto foi direto para o plenário.
O senador Paulo Paim (PT-RS) afirmou que centenas de cidades no mundo todo, como Berlim, Paris e Buenos Aires, estão revendo a privatização do saneamento:
— Estão arrependidas. O projeto facilita a privatização de estatais de saneamento básico em todos os estados brasileiros.
— O projeto só vai benefciar os grandes centros urbanos. No entorno, continuaremos à margem — criticou o líder do PDT, Weverton Rocha (MA).
Durante a votação, o líder do PT no Senado, Rogério Carvalho (SE), levantou uma questão de ordem, afirmando que o projeto deveria sair da pauta, sob o argumento que o tema não poderia ser votado em sessão remota, pois nada tem a ver com medidas de enfrentamento à pandemia de coronavírus. Lembrou que o texto ainda teria de ser examinado, antes de ir ao plenário, pelas comissões do Meio Ambiente e de Infraestrutura da Casa. E ainda argumentou que o assunto não foi devidamente discutido pelos senadores.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disse que houve 16 audiências públicas para tratar do tema e nove outros eventos. Acrescentou que houve 49 reuniões e 167 debatedores foram ouvidos. Afirmou que, por ele, a questão formulada por Carvalho seria indeferida, mas colocou a questão em votação. Como resultado, 61 senadores votaram pela votação do projeto e 12 foram contra.
Eliane Oliveira e Manoel Ventura, O Globo