Eduardo Anizelli/Folhapress
O Rio Grande do Norte e mais vinte e um estados, além do Distrito Federal estão com seus estoques de medicamentos para a intubação de pacientes graves da Covid-19 no vermelho.Os dados são de um levantamento obtido pelo UOL realizado pelo Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), até o dia 9 de agosto, em 1.500 hospitais referências para o tratamento da Covid-19 da rede estadual pública e privada.
A classificação é dada para estados que têm estoques de duração para até cinco dias ou menos. Outros três estados, Paraná, São Paulo e Espírito Santo, estão em amarelo, que define a previsão de cobertura para até 15 dias. Minas Gerais é o único estado em que não haveria emergências na rede do governo, embora tenha relatos de carências em municípios.
O quadro tem levado hospitais a recusar pacientes e tem feito médicos usarem morfina em substituição aos medicamentos apropriados.
A lista de remédios em falta inclui 22 sedativos, anestésicos, analgésicos e bloqueadores neuromusculares, o chamado “kit intubação. Esses insumos são usados em pacientes que precisam de máquinas para respirar com o objetivo de não acordarem ou sentirem dor quando intubados.
A responsabilidade pela aquisição e distribuição destes medicamentos é dos estados e municípios, que alegam dificuldades em comprar dos fabricantes e sobrepreço. Após a pandemia, a tarefa também passou a ser do Ministério da Saúde, que atua em auxílio às unidades da federação.
Por outro lado, as indústrias alegam ter uma demanda superior à produção por conta da pandemia do novo coronavírus, apesar de relatarem ter quadruplicado a produção desses produtos. Já a cloroquina —medicamento que ainda não tem eficácia comprovada pela ciência para o tratamento da Covid-19, mas frequentemente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido)— tem sido acumulada em estoques da União, estados e municípios que recebem o produto.
A pasta tem hoje 4 milhões de comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina estocados e já distribuiu outros 5 milhões para todo o país. Em março de 2020, o órgão adquiriu 3 milhões de comprimidos de cloroquina 150 mg, produzidos pelo Laboratório Químico Farmacêutico do Exército. O Ministério da Defesa informou que a produção dos 3 milhões de comprimidos de cloroquina custou R$ 1,1 milhão desde o início da pandemia até o momento. O Exército afirmou que não foram necessários investimentos a mais ou adequações no laboratório da Força, que produz cloroquina desde 2000 para o combate à malária.
Enquanto isso, um dos insumos zerados em 12 estados é o relaxante neuromuscular atracúrio, indicado para facilitar a intubação endotraqueal e propiciar a cirurgia, segundo levantamento do Conass.
A situação é mais crítica em estados como Ceará, Rio de Janeiro e Santa Catarina, que consumiam, respectivamente, 92.614, 89.414 e 73.556 unidades ao mês. Todos os 26 estados mais o Distrito Federal sofriam com a falta de medicamentos na primeira semana de agosto, segundo o Conass. Não há estado que não esteja com algum problema de estoque.
Os estados com mais remédios em falta nesse início do mês eram Roraima, Rio Grande do Norte e Amapá, mostra o levantamento. Os dois primeiros estados estavam sem 9 dos 22 medicamentos acompanhados pelo conselho. O terceiro, sem oito. Os três estados também estão com estoque baixo para os demais 13 medicamentos. Em Roraima, por exemplo, oito remédios tinham estoque suficiente para apenas mais três dias de uso. No Rio Grande do Norte, oito medicamentos estavam com quantidade prevista para durar mais cinco dias.
Segundo o conselho, o desabastecimento começou em abril, quando houve o primeiro pedido de ajuda do Amapá. Desde então, o quadro de espalhou. Para o presidente do Conass, Carlos Lula, a questão “ainda está longe de ser resolvida”.
“O Ministério da Saúde fez uma aquisição de emergência, na semana passada, mas o cenário ainda é de desabastecimento. Estamos numa situação crítica. As compras não têm dado certo e as fábricas apontam ausência de matéria-prima”.
Carlos Lula, presidente do Conass
O bloqueador neuromuscular cisatracúrio é um dos medicamentos com maior problema de escassez no país. A Bahia consome uma média de 35.092 ampolas de 10 ml do remédio ao mês, mas estava com o estoque zerado na primeira semana de agosto, segundo o Conass. O Rio de Janeiro consome a média de 35.618 ampolas e só tinha estoque para mais dois dias. As demandas variam de acordo com remédio e o estado. O Distrito Federal consome 756 ampolas de 5 ml do relaxante muscular rocurônio por mês, por exemplo, e tinha estoque para mais 14 dias nesse início de agosto, mostra o levantamento. O Pará tem média de 41.018 ampolas por mês e tinha estoque para seis dias. O Rio de Janeiro consome cerca de 83 mil ampolas ao mês e o estoque só aguentaria quatro dias.
O Brasil contabiliza mais de 104 mil mortos pela covid-19 dentre cerca de 3 milhões de pessoas infectadas.
Recusa de pacientes
Em Santa Catarina, o Ministério Público Estadual entrou com uma ação civil pública para obrigar o governo estadual a regularizar o abastecimento e teve decisão liminar favorável obtida nesta terça-feira (11) na Justiça. Segundo o promotor de Justiça Luciano Naschenweng, houve denúncias de pacientes mantidos em respiração mecânica “com fármacos de sedação não apropriados para essa finalidade”.
“Em razão da falta de sedativos, vários dos hospitais estão obrigados a utilizar morfina como substituto, uma vez que procedimento de intubação é potencialmente doloroso, devendo ser feito sob sedação. Porém, a utilização da morfina para sedação em UTI não pode ser rotineira, pois os efeitos adversos podem ser maiores e até prolongar a permanência do paciente no tratamento intensivo”, disse.
O mesmo aconteceu em Minas Gerais, também nesta terça-feira (11), quando a Justiça determinou que a União e o estado tomassem providências, em 72 horas, para regularizar o abastecimento em Uberlândia, a pedido do Ministério Público Federal (MPF).
O Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) afirma não haver hoje uma mensuração de quantas pessoas já foram afetadas ou até morreram pela falta de remédio. Mesmo assim, as ações do Ministério Público retratam a dimensão dos efeitos práticos. O presidente do Conasems, Wilames Freire, explica que a falta desses medicamentos inviabiliza leitos que poderiam ser utilizados no acolhimento de pacientes com o coronavírus.
“Se o paciente está para ser intubado e não tem essa medicação, claro que o hospital não vai intubá-lo porque não vai ter a medicação necessária para mantê-lo sedado e manter o quadro de recuperação. O efeito é devastador, porque, em alguns momentos, se o hospital deixa de intubar o paciente que precisa do processo para se recuperar, vai contribuir para que possa agravar o estado de saúde e, às vezes, chegando a óbito”, afirmou.
Casos investigados
No Rio, a Defensoria Pública acompanha uma denúncia de que sete mortes estariam relacionadas com a falta de sedativos para pacientes, no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, na zona norte do Rio, e referência para tratamento da Covid-19. A secretaria municipal de Saúde disse que foi aberta uma sindicância para apuração da denúncia sobre a falta de medicamentos que “segue em andamento sob sigilo, como determina a regra para esse tipo de ato”. “O prazo foi prorrogado, dentro dos termos legais, e a apuração encontra-se em fase final”, respondeu.
Jogo de empurra
De acordo com a presidente da comissão da Saúde do Conselho Nacional do Ministério Público, Sandra Krieger, a autonomia de estados e municípios “não pode ser desculpa ou amuleto para que a União deixe de agir ou se desonere de seu papel”.
Ela explica que há diversos elementos que definem a responsabilidade da União na aquisição de medicamentos em situações extremas, como a de uma pandemia. Entre elas, o artigo 23 da Constituição Federal, que diz ser competência comum da União, estados, Distrito Federal e municípios cuidar da saúde e assistência pública. Também cita a lei 8080/90, que dispõe sobre as condições para a proteção da saúde. O texto diz que cabe ao Estado prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional.
“Me parece que está faltando uma ação coordenada entre o ministério, estados e municípios. Não é crível que o Brasil, regido desde 1990 pela Lei Orgânica da Saúde [que regula as ações e serviços de saúde], não tenha como tornar efetivo o relacionamento tripartite [espaços em que ocorrem o planejamento, a negociação e a implementação das políticas de saúde pública]”, disse a conselheira.
Em nota, o ministério respondeu que “está em andamento o processo para aquisição de kits para intubação” e que foram feitas “mais de 15 requisições administrativas” destes medicamentos às indústrias —instrumento de intervenção estatal mediante o qual, em situação de perigo público iminente, o estado utiliza bens ou serviços particulares com indenização.
Foram entregues 862,5 mil unidades para o atendimento emergencial das demandas da rede pública de estados e municípios. O produto foi adquirido, após diálogo com a indústria farmacêutica e sem comprometer as aquisições pela rede privada. Desta forma, o Ministério da Saúde pôde auxiliar estados e municípios no reabastecimento dos estoques”, afirmou a pasta.
Também afirmou que, “devido ao desabastecimento de medicamentos utilizados na intubação de pacientes que tiveram complicações pela infecção do coronavírus, o Ministério da Saúde está apoiando estados e municípios, em ação conjunta e coordenada com o Conass e Conasems”.
“À medida que os medicamentos vão sendo adquiridos, são disponibilizados aos estados para a distribuição local”.
Ministério da Saúde, em nota
Acúmulo de cloroquina
Somente o laboratório do Exército tem em estoque cerca de 750 mil comprimidos de cloroquina, um quarto do que produziu desde o início da pandemia. O custo total de produção dos quase 3 milhões de comprimidos até o momento foi de R$ 1,1 milhão. O Ministério da Saúde afirmou que o laboratório do Exército distribuiu aos estados 1.924.700 comprimidos de cloroquina 150 mg. Antes da pandemia, os militares produziam 250 mil comprimidos a cada dois anos para o combate à malária.
O UOL perguntou à Defesa quando foi a última demanda da pasta e do Ministério da Saúde para a cloroquina, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Já a hidroxicloroquina é adquirida pelos estados, mas o Brasil recebeu uma doação de 3 milhões de comprimidos do governo dos Estados Unidos e do laboratório Novartis/Sandoz.
Em 19 de julho, a diretora do Departamento de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, Sandra de Castro Barros, encaminhou um email ao Conass sobre “os cenários para distribuição da Hidroxicloroquina 200 mg” para planejar a distribuição do medicamento pelo governo aos estados.
Em resposta, a diretoria do Conass pediu que ficasse facultado às secretarias de Saúde o recebimento do insumo, “considerado que as melhores evidências disponíveis até o momento não sustentam o benefício clínico dos pacientes”. Também alegou que os estados, na sua grande maioria, não dispõem de farmácias para manipulação da cloroquina- o medicamento não é entregue pronto para o consumo pelo ministério.
A secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do Sul, por exemplo, recebeu 26 mil comprimidos de cloroquina do Ministério da Saúde até a última sexta-feira (7). Só um pouco mais da metade —13.406— foi distribuído, o restante está estocado. Já a falta de itens do kit intubação é uma preocupação porque os medicamentos que chegam não são suficientes para suprir o aumento da demanda dos hospitais, segundo o secretário de Saúde, Geraldo Resende Pereira.
“Estamos com a apreensão de que os medicamentos faltem. O Ministério da Saúde nos remeteu um quantitativo pequeno que vai dar para os próximos cinco dias”, disse, na última segunda-feira (10). De acordo com a secretaria, por enquanto, não há previsão de mover a cloroquina e hidroxicloroquina estocada. Os medicamentos permanecem à disposição dos municípios sul-mato-grossenses.
No mês passado, a deputada Carmen Zanotto (Cidadania-SC), relatora da Comissão Externa da Câmara de Enfrentamento à doença, chorou em uma reunião do grupo ao contar a situação de um paciente intubado em uma UTI de Santa Catarina. Ele estaria “bastante agitado” porque não recebeu a medicação necessária para manter a sedação. “Por favor, eu imploro, olhem para os nossos estados. Desculpem a emoção, mas nossa carga aqui tem sido pesada, dura”, disse na ocasião. Hoje a comissão vai se encontrar novamente para debater o tema, que tem preocupado o presidente do grupo, o deputado Dr. Luizinho (PP-RJ).
Demanda superior à produção
O Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos) afirmou que as empresas farmacêuticas trabalham para regularizar o fornecimento dos produtos e os problemas no abastecimento estão relacionados ao “grande e repentino aumento de demanda, em curtíssimo espaço de tempo”. Apesar de as indústrias farmacêuticas terem quadruplicado a produção desses produtos, segundo o Sindusfarma, a demanda é “muito superior à capacidade” e as empresas enfrentam dificuldades para comprar matérias-primas devido à alta procura mundial.
Por Uol